Os meses de maio e junho de 2013 no Brasil foram marcados por contínuas
e maciças mobilizações de rua em várias cidades do país, cujos gritos e
palavras de ordem expressavam a insatisfação e indignação frente à precarização
da vida nas cidades, reflexo também do aumento do custo de vida, da inflação,
do endividamento, do desemprego, da falta de transporte público de qualidade, da
marginalização, abandono e exclusão de milhares de pessoas pertencentes às
classes mais pobres e residentes nas periferias das grandes cidades. A forte
crise instalada sobre os partidos, sindicatos e instituições representativas a
partir da primeira década do ano 2000, também amplificaram a revolta e as
mobilizações, catalisando a efervescência e o agigantamento dos movimentos de
rua em todo o país. Movimentos sem líderes e sem partidos, construídos de forma
espontânea e não tradicional, sem hierarquização e com relações horizontais,
desenharam o modelo das mobilizações brasileiras. O pano de fundo destes
movimentos que eclodiram explosivamente em todo o Brasil em 2013 foi a forte crise
social, econômica e financeira que atravessa não somente o Brasil, mas todo o
mundo capitalista globalizado. O aprofundamento das políticas neoliberais em escala planetária, a precarização do mundo do trabalho, as políticas
de austeridade impostas pelos organismos internacionais (Fundo Monetário Internacional,
Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial) tem provocado o aumento da
concentração de renda e o empobrecimento acelerado e a degradação da vida de
grande parte da humanidade, marginalizada e sem acesso a qualquer tipo de
direitos ou garantias sociais. A chamada crise do subprime em 2008 nos EUA foi capaz de alavancar graves crises em
toda economia capitalista mundial, atingindo em cheio a África, Europa, América
Latina e Ásia.
Com o aprofundamento da crise, aumentaram também os conflitos e os
confrontos urbanos, acelerados e amplificados pelo aumento das desigualdades de classes e
também pela elevação da concentração da renda por parte de uma minoria. Consequentemente
o Estado, como mantenedor e reprodutor da ordem burguesa capitalista, promove o
aumento exponencial da repressão e da violência através de seu aparato militar.
No Brasil os confrontos nas ruas se tornaram violentos e marcados pelo uso
desproporcional da força policial militar, onde manifestantes, jornalistas,
estudantes e professores foram agredidos e presos violentamente. Várias cidades em volta
do mundo se tornaram foco de mobilizações populares e de rua. Estudantes,
jovens trabalhadores precarizados, aposentados e também desempregados de Madri,
Atenas, São Paulo, Lisboa, Fortaleza, Nova York, Goiânia, Rio de Janeiro,
Recife, Buenos Aires, Santiago e de tantas outras cidades vão para as ruas
demonstrar o descontentamento e a revolta frente à exploração desenfreada e a
barbárie provocada pelo sistema capitalista.
Ela mostra como o poder coletivo de corpos no
espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o
acesso a todos os outros meios está bloqueado [...]. A praça Tahir mostrou ao
mundo uma verdade óbvia: são os corpos nas ruas e praças, não o balbucio de
sentimentos no twitter ou facebook, que realmente importam (HARVEY, 2012).
As ruas se transformam em “arenas de guerra”, de um lado manifestantes
com faixas e cartazes, e do outro a polícia com balas de borracha, gás lacrimogêneo,
cavalos, cães e portando também armas letais de alto calibre. Os confrontos
eram transmitidos ao vivo pela mídia nacional e internacional. A imprensa brasileira inicialmente acaba
apoiando incondicionalmente a brutal ação militar contra os manifestantes, denominando-os
de “baderneiros” e de “vândalos”. Mas, somente muda o discurso a partir do momento em que as mobilizações aumentam de
forma significativa, alcançando o maciço apoio popular, e também quando a
própria imprensa passa a sofrer as atrocidades, brutalidades e o massacre da
violência policial militar. As adjetivações “terroristas”, “vândalos” e “baderneiros”
continuam por parte da imprensa nacional, no entanto, mudam-se os adjetivos (para
manifestantes) quando as transmissões televisionadas exibiam mobilizações populares em outros países. O bombardeio midiático contra os denominados Black Blocks se intensifica
drasticamente após as primeiras manifestações de rua, na clara tentativa de
criminalizar e desqualificar os integrante das ações diretas nas ruas.
Adjetivações descabidas como terroristas, vândalos, baderneiros e arruaceiros
são utilizados continuamente em todos os jornais e telejornais do Brasil.
E é justamente neste contexto, que surge uma palavra nova aos ouvidos
dos brasileiros e também uma imagem diferente nas telas dos telejornais da TV,
uma imagem fascinante de pessoas formando "blocos negros" de proteção
na linha de frente das manifestações, um corpo coletivo negro em movimento,
descontrolado e imprevisível dentro do espaço urbano das ruas. São os chamados Black Blocks, pessoas vestidas de preto
e com máscaras ou lenços cobrindo os rostos, atacando e destruindo os
principais símbolos do capitalismo, concessionárias de veículos, bancas de
revistas, automóveis, fachadas de multinacionais e de fast-foods. Sua função é a formação do chamado front nas mobilizações, protegendo todos os manifestantes da
violência e da forte repressão policial e ainda reagindo às ações violentas da
polícia com pedras, rojões, escudos de madeira, gritos de guerra, estilingues,
coquetéis molotov, chutes e murros.
Outrora desconhecido do grande público e da imprensa nacional, os Black Blocks, passam a provocar
mistério, fascinação, repúdio, paixão, ódio, aprovação e reprovação. O poder coletivo
dos corpos nas ruas, de forma descontrolada e indisciplinada, ocupa os espaços
públicos de forma caótica, e se transformam no instrumento mais efetivo de
oposição aos ataques e repressões promovidas pelo estado burguês. Corpos sem
controle que bloqueiam avenidas e ocupam praças, revelam que os espaços das
ruas não deveriam ser lugares
privativos, mas públicos. Corpos indisciplinados, que com chutes e socos quebram
vitrines e destroem automóveis, desmascaram o fetiche da mercadoria e
demonstram que o corpo é mais valioso do que meros objetos. Corpos “selvagens” invadem
multinacionais e tentam devolver às pessoas o verdadeiro valor de uso do produto
do seu trabalho em substituição ao supra-sumo dos capitalistas selvagens: o valor
de troca.
Os Black Blocks não são uma
organização, entidade, instituição ou movimento social, são na verdade um idéia
de ação direta nas ruas, uma tática pautada em princípios anti-capitalistas,
onde seus integrantes optam pela destruição da propriedade privada como forma
de protesto político. Os Black Blocks
tem ainda a função de proteger manifestantes e evitar massacres promovidos por
um dos principais aparatos de repressão do estado: a polícia militar. Os alvos
dos Black Blocks, ao contrário da
polícia, não são pessoas, mas os símbolos clássicos do capitalismo, como
multinacionais, fast-foods,
concessionárias de veículos, bancas de jornal, etc. As ações dos Black Blocks são todas realizadas na rua, onde seus
métodos e práticas refletem uma organização não hierarquizada de ação direta. A
indisciplina coletiva, a insurgência e o descontrole dos corpos Black Blocks demonstram um rompimento
total com a disciplina, a ordem e subsunção às formas de controle dos corpos no
capital.
Em contraste com os corpos dóceis, obedientes, mecânicos e servis
forjados pela educação burguesa, os corpos dos Black Blockers[1] exaltam
a liberdade plena e a indisciplina, são indomáveis e imprevisíveis. Os corpos Black Blockers ora funcionam como
catapultas de pedras contra as paredes de soldados dos batalhões de choque, ora
se transformam em massas vivas para bloqueio de ruas e avenidas, ora são como
pincéis de artistas que vislumbram paredes e muros como telas para pichações,
ora como verdadeiras muralhas de proteção contra cassetetes, balas de
borrachas, sprays de pimenta e poderosos jatos d’água. São corpos que assustam
e agridem mais as paranóicas mentes capitalistas daqueles que estão no poder,
do que qualquer outra forma de manifestação pacífica ou sem violência (LUDD,
2002).
Manifestantes transformam seus corpos em
catapultas, que atiram pedras em barreiras num espaço que exige outra
disciplina, quebrando a rotina e a tranqüilidade dos que dirigem e comandam a
economia e a política, demonstram a ausência daquilo que mantém as coisas em
ordem e o capitalismo em vigor: a disciplina (LUDD, 2002, p.14).
A ação Black Block é uma
tentativa de superação dos modelos tradicionais e pacifistas de manifestações
de rua caracterizados pelo reformismo. Sua intencionalidade é a destruição da
ordem da coisas. Os Black Blocks se
caracterizam pela desobediência civil e pela ação direta. A evolução e a
mutabilidade de suas estratégias e atuações, que são características
importantes, ajudam a criar o fator de imprevisibilidade, dando dinâmica às ações, dificultando e impedindo
as reações de repressão do Estado.
O Black
Block não é somente um avanço em relação aos meios de
contestação tradicional, mas também um avanço em relação à ação ilegal
isolada, que ganha sentido no quadro de sua luta global e política. O Black Block é também a desorganização
organizada, a possibilidade de associar estratégica e prática igualitária, radicalidade
e lucidez política (LUDD, 2002, p.86).
Os Black Blockers defendem a
luta contra a sociedade de classes e pelo fim das relações sociais baseadas na
mercadoria e no trabalho abstrato. Não possuem vínculos com partidos,
sindicatos ou com os governos e não possuem nenhuma forma de submissão ou de
sujeição à mídia. Adotam a diversidade de táticas e não praticam a violência
sem sentido, pois suas ações são planejadas e se concentram em alvos
específicos. A violência Black Block não
pode ser de forma alguma comparada com a violência do Estado, onde este último, através de
vários instrumentos, inclusive através da repressão desproporcional da policial militar, é capaz de coagir,
incriminar, torturar, reprimir e matar em defesa da falsa ordem e moral
burguesa aliada ao capital. (LUDD, 2002)
O
dinamismo, a imprevisibilidade e a violência característica deste coletivo de
rua pressupõe uma nova forma de luta e resistência expressas na própria
corporalidade de sujeitos que têm como princípios a destruição da propriedade
privada, o fim do jugo do Estado e a emancipação plena do proletariado.
Como
explicar quando algumas dezenas de pessoas indisciplinadas, descontrolados,
criando ações radicais e imprevisíveis nas ruas, sejam capazes de atemorizar
chefes de Estado, tirar o sono de banqueiros e gestores de grandes corporações
e ainda de chefes de polícia, muito mais do que milhares de pessoas organizadas
e reunidas em passeatas pacíficas, ordeiras, disciplinadas e não violentas? A
resposta a esta pergunta talvez esteja justamente nas táticas e formas de
organização dos Black Blocks e também
nas suas características e princípios fundamentais. São na verdade corpos de
sujeitos que se movimentam de forma imprevisível, sem disciplina e sem
controle, mas que expressam na sua corporalidade violenta a própria ânsia
humana por liberdade e por justiça.
Segundo Ribas (2011) para a compreensão da corporalidade dentro dos
princípios anarquistas, faz-se necessário pensar os significados e sentidos
deste para além de uma análise que esteja focada apenas na perspectiva moral,
contrapondo radicalmente ao discurso higienista e de normatização do corpo
vigente na ideologia disciplinadora burguesa. A denominada moral libertária é
na sua essência uma radical oposição à moral burguesa, e se contrapõe a este
paradigma tradicional, no sentido de fomentar a transformação social e para o
devir de uma moral revolucionária de uma nova sociedade. Percebe-se o caráter
de subversão às normas, de transgressão através do próprio corpo como
possibilidade de criação de expectativas revolucionárias, a partir das próprias
experiências corporais vivenciadas pelos sujeitos, onde o corpo passa a ser
compreendido como produtor de cultura, e não simplesmente produto desta. Sendo
assim, dentro dos princípios anarquistas, o corpo não é pensado como mero
objeto da cultura, mas como sujeito produtor de sentidos e de significados,
onde as próprias vivência e experiências sentidas pelo corpo são capazes de
transformá-lo em instrumento para a revolução social. O corpo do Black Blocker é anárquico em sua
essência, defende princípios libertários e todos seus movimentos, expressões,
aparências e atitudes são resultados do “desnudamento” do próprio corpo das
amarras da mercadoria e da opressão do capital, numa ânsia e luta
descontrolada pela plena liberdade do corpo-sujeito.
Segundo LUDD (2002) a terminologia Black
Block é originária dos EUA, que se tornou conhecida principalmente após as
grandes e famosas mobilizações anti-globalização ocorridas em novembro de 1999
na cidade de Seatle. Entretanto o Black
Block verdadeiramente se origina a partir de experiências ocorridas na Alemanha durante a
década de 1980, em manifestações de rua organizadas por movimentos da esquerda
radical autônoma alemã, onde manifestantes vestidos de preto e com capuzes ou
máscaras, se reuniam durante as manifestações a fim de garantirem a proteção
dos manifestantes através de enfrentamentos contra a violência policial. Os Black Blocks são grupamentos livremente
organizados, onde pessoas com mesmas afinidades se reúnem em manifestações ou
passeatas, defendendo a tese de que o capitalismo e a propriedade privada são as verdadeiras e
maiores formas de violência existentes, e que tal sistema não pode ser
reformado ou melhorado, mas que deve ser totalmente destruído a fim de
converter o limitado valor de troca em valor de uso.
A Copa e os Black Blocks
A efervescente crise neste
atual momento histórico do capitalismo, fomentada pela ampliação do desemprego,
da precariedade social e amplificada pela crise dos partidos, dos sindicatos e
de todas as demais formas de instituições representativas, tem provocado a
gigantesca eclosão de movimentos sociais em todo o mundo. No Brasil as grandes
mobilizações de maio e junho de 2013 deram o tom da revolta e insatisfação
popular contra a atual ordem capitalista vigente. O aumento da inflação, os
vultuosos gastos públicos na realização de mega eventos (Copa FIFA 2014) e
também o endividamento das famílias brasileiras, serviram como estopim para
provocar mobilizações em centenas de cidades do país. A imprevisibilidade, o
espontaneísmo e a força das grande mobilizações no Brasil tomaram de
surpresa os gestores públicos e também a
elite nacional. Neste contexto do Brasil nas ruas, surgem os Black Blocks, uma
idéia de ação direta-violenta, autônoma e não hierarquizada. Seus alvos envolvem
a propriedade privada e os principais símbolos do capitalismo selvagem. Taxados
pela imprensa como “vândalos”, “baderneiros” e até mesmo “terroristas”, os
Black Blocks promovem a defesa dos manifestantes que integram as mobilizações,
no intuito de evitar o massacre pelas forças militares do Estado. Suas ações
utilizam como principal instrumento o próprio corpo, ora como
catapultas-humanas, ora como barreiras-vivas e ora como perfuradores de
bloqueios policiais. O corpo do Black
Blocker expressa a liberdade em sua forma mais radical, a indisciplina como
forma de luta, a desorganização organizada, a bagunça planejada e a violência
como reação ativa a uma violência policial infinitamente maior. A realização da COPA DO MUNDO FIFA DE FUTEBOL 2014 no Brasil revelará um episódio histórico para o país caso se repitam as manifestações de rua que ocorreram em 2013 durante a Copa das Confederações, onde os Black Blocks foram protagonistas de várias ações anti-copa-do-mundo em cidades como Recife, Fortaleza, Rio de Janeiro, Goiânia, São Paulo dentre outras. Quase um ano já se passou, faltam cerca de 60 dias para início da Copa do Mundo FIFA 2014, e muita coisa ainda não mudou, inclusive a indignação e a insatisfação das camadas mais pobres da população brasileira, e quem sabe o grito de "Vem Pra Rua" ecoe novamente, e os Black Blocks com toda a certeza lá também estarão. (Enviado via e-mail e escrito por: COELHO, R. - docente UEG - UnU ESEFFEGO - o texto é parte do projeto de pesquisa vinculado à UEG (em tramitação))
OLÉ!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
HARVEY,
D. Os Rebeldes na Rua: o partido de
Wall Street encontra sua nêmesis. In: Ocuppy:
momentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo. Boitempo: Carta, 2012.
LUDD,
N. A Urgência das ruas: Black
Block, Reclaim the Streets e os Dias de Ação Global. São Paulo: Conrad Editora
do Brasil, 2002.
RIBAS,
A.C. Corpo, Liberdade e Anarquismo.
Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, jul, 2011.
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